domingo, 11 de abril de 2010

Sem estado para unir...sem regras para seguir.


Grupo Jornaleiros

Thomas Hobbes (1588-1679), pensador inglês responsável pela mundialmente famosa obraLeviatã, publicou nela uma série de conceitos e considerações a respeito do impossível retorno dos homens ao estado de natureza. Ele também afirma, entre outras coisas, que os homens foram feitos iguais. O autor ainda diz que sua natureza leva à discórdia (competição, desconfiança e desejo de glória). Sem um poder comum, os homens estarão sempre em constante estado de guerra uns contra os outros, levando à necessidade de um poder comum que os mantenha unidos, pois sempre que não houver a paz, necessariamente haverá a guerra.


Em Serra Leoa, país da costa oeste africana, a guerra civil desencadeada em 1991 nos mostra um prato cheio de exemplos das aplicações práticas dos conceitos de Hobbes, mas antes de qualquer coisa, um breve histórico: Serra Leoa localiza-se entre a Guiné e a Libéria, na costa africana. A Guerra Civil de Serra Leoa começou em 1991 pela Frente Revolucionária Unida (Revolutionary United Front ou RUF em inglês), insatisfeita com a posse do presidente Joseph Momoh, que, após um golpe militar protagonizado pela própria RUF em 1992, exilou-se na Guiné. Lá, o ex-presidente criou o Conselho Nacional Provisório de Governo (National Provisional Ruling Council ou NPRC) que, junto com mercenários contratados da África do Sul, passou a combater os revolucionários. Após uma série de conflitos, posses presidenciais, golpes de estado, negociações e até uma intervenção militar do exército britânico, um presidente eleito democraticamente declarou como terminada a guerra civil. Embora os vencedores da guerra tenham sido, teoricamente, o exército da Serra Leoa e seus aliados, fica claro que o povo saiu perdendo: diversos crimes de guerra foram cometidos durante o conflito, incluindo mutilações, torturas, estupros, recrutamento compulsório de crianças e adolescentes para os grupos armados, entre outros que deixariam qualquer defensor dos direitos humanos de cabelo em pé. O ex-soldado Ishmael Beah (recrutado com apenas 12 anos) sobreviveu e contou sua história em seu livro Muito longe de casa: memórias de um menino-soldado, de onde se extraiu um trecho para exemplificar o tipo de atrocidade enfrentada pela população durante a guerra:

O tenente continuou falando por mais de uma hora, descrevendo como os rebeldes haviam cortado as cabeças dos membros de algumas famílias e feito os parentes assistirem àquilo, como tinham queimado aldeias inteiras, com os habitantes nelas, forçado filhos a penetrarem suas mães, partido corpos de bebês recém-nascidos ao meio porque choravam demais, aberto a barriga de grávidas para arrancar os fetos e matá-los...

Hobbes pregava que havia três grandes causas da discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. De fato, a discórdia gerada entre os grupos armados de Serra Leoa se dava, primeiramente, na competição pelo controle do país e da mineração de diamantes, uma das principais atividades econômicas de Serra Leoa. Já desconfiança e a glória podem ser observadas em cada um dos soldados envolvidos no conflito. Um combatente sempre enxergava a execução cruel de seus inimigos como a glória. Os líderes dos grupos incentivavam seus homens a tirarem a vida do inimigo da maneira mais dolorida, cruel e sanguinária possível, dando como motivação o fato de que esse teria sido o método utilizado por este inimigo para tirar a vida dos familiares do soldado a quem o líder se dirige. Logo se vê o como a violência gera violência... Quanto à desconfiança, essa pode ser vista na vida pós-guerra civil dos habitantes da Serra Leoa. Os soldados recrutados sofriam uma forte lavagem cerebral (regada a entorpecentes, bebidas alcoólicas, mulheres e filmes do Rambo) para odiar o inimigo, de forma que mesmo em um cenário de paz, um convívio harmonioso entre os dois mostra-se inviável. A UNICEF chegou a recolher crianças-soldado no país para levá-las para complexos seguros, onde elas tinham cama, comida, e tratamento. Contudo, não tomou o cuidado de separar soldados revolucionários de soldados das forças nacionais, o que gerava violentos conflitos internos.

E é justamente aquele convívio harmonioso que o atual presidente do país, Ernest Bai Koroma, tem tentado promover, assim como seu antecessor, Ahmad Tejan Kabbah, em sintonia com a idéia de Hobbes de que um indivíduo não apreciaria a companhia de outro, a não ser que houvesse um poder que os mantivesse unidos.

Concluindo, podemos dizer que o contrato social desenhado por Hobbes, ou a falta dele, foi muito bem exemplificado em Serra Leoa da década de 90, a partir do momento em que o governo mostrou-se ineficiente para manter a unidade nacional e assim abriu espaço para que outros grupos assumissem o poder naquele momento,o que acabou por provocar uma guerra civil, ou a guerra de todos contra todos, como dizia o autor.

O grupo recomenda:

Filmes:
  • Diamantes de Sangue (Blood Diamond, 2006, EUA. De Edward Zwick. Com Leonardo DiCaprio, Djimon Hounsou e Jennifer Connelly)
  • O Senhor das Armas (Lord of War, 2005, EUA. De Andrew Niccol. Com Nicolas Cage, Jared Leto e Ethan Hawke)

Livros:
  • Muito longe de casa: memórias de um menino-soldado (A Long Way Gone: Memoirs of a Boy Soldier, 2007, por Ishmael Beah. Ediouro Publicações S.A.)

Músicas:
  • “Desordem”, “Dissertação do Papa sobre o crime seguida de orgia”,  “Violência”, dos Titãs.

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