segunda-feira, 12 de abril de 2010

Das heranças lockeanas


Grupo Seis Poderes

É possível discernir, ao longo da vida de John Locke (1632-1704), dois períodos distintos. O primeiro deles quando era tutor em Oxford, tempo em que possuía ideias conservadoras, hobbesianas alguns diriam. Seu segundo período, mais conhecido e maduro, em que desenvolveu sua filosofia política, se dá a partir de 1666, época em que entra em contato com Lord Anthony Ashley-Cooper (posteriormente Earl of Shaftesbury). Desse momento em diante, Locke irá distinguir-se como o defensor de ideais de liberdade religiosa, consciência e liberdade individuais, propriedade privada, governo mínimo e principalmente como o pai do liberalismo político.
  
      
 Locke ainda afirma que “por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), deve-se garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir.” Liberalista, o pensador crê em um Estado que respeite a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas. Acreditava que ninguém poderia se submeter a nenhum outro tipo de poder, se não à própria lei.
    
Como intelectual protetor da propriedade privada e da sociedade civil burguesa, não se pode negar a contribuição de Locke para a criação de uma instituição como a polícia. Segundo o autor, o pacto social foi feito a fim de que o estado de natureza, em que todos eram livres, cedesse lugar a uma sociedade civil em que a propriedade privada fosse garantida. À medida que os indivíduos dispõem de sua liberdade e a entregam à comunidade, o poder político civil tome forma.
    
A instituição policial, criada para assegurar a propriedade privada e ordem na sociedade, é, portanto, uma instituição burguesa, que defende os interesses da atual classe dominante e simboliza a consolidação desta no poder. Já que esta tem como papel principal manter a propriedade privada em segurança, daí depreende-se que, no estado de natureza, ela estaria instaurando um estado de guerra, em que o uso da força contra outro homem considerar-se-ia um ato de violência por não haver um juiz superior comum que pudesse aplicar as leis à situação. No entanto, por tratar-se de uma instituição legalizada e com poderes para apreensão e invasão domiciliar, ela perpetua-se como um estabelecimento que, no estado civil da sociedade, tem o uso legítimo da força e, mesmo assim, está submetida ao Estado, constituindo-se como uma organização não agressora.
     
Entretanto, com a distorção do trabalho da polícia e relativa perda de objetividade, ela se tornou uma estrutura que, ao menos no Brasil, perdeu grande parte de sua credibilidade e respeito. Como exemplo de situação em que esse fato ocorreu, pode-se citar o período dos ataques do PCC à capital paulista em 2006. O Primeiro Comando da Capital, já instalado como poder paralelo em nossa sociedade, deixou a cidade e as circunvizinhas em pânico naquela época. Dado esse descontrole na sociedade, a polícia interveio, utilizando-se do seu poder e indo além dele também. A política do “atirar e depois perguntar” desencadeou um medo generalizado na comunidade, tanto incluída como excluída. Durante aqueles meses, a própria polícia instaurou, em uma sociedade civil já consolidada, um estado de guerra mesmo com a existência de um juiz comum, o Estado. Na época, a confiança de que a ordem da vida cotidiana burguesa era real e factual ruiu, pois um novo poder mostrou-se tão organizado e bem equipado quanto aquele estabelecido séculos antes, colocando a pergunta: o pacto social em que todos os homens abrem mão de sua liberdade e a entregam a um governo civil encontra-se em funcionamento até hoje? Tem-se a impressão de que um novo pacto foi criado por aqueles excluídos do primeiro, que se revela tão forte em sua área quanto o poder político institucionalizado. Contudo, o abuso de poder não pode ser justificado e o comportamento irascível da polícia também não. Como declarou Oliver Wendel Holmes Jr., ex-ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos: “O direito de eu movimentar meu punho acaba onde começa o seu queixo”- lição que todo o poder público brasileiro precisaria urgentemente aprender.

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